Criador do lusotropicalismo, Gilberto Freyre, no seu livro em que narra os sete meses de viagens, em 1951, por Portugal e seus estados ultramarinos em África e Ásia, nos dá uma lição de comportamento verdadeiramente democrático. Crítico feroz do Estado Novo brasileiro, eleito deputado constituinte que sucedeu a queda de Vargas, em 1945, Freyre assumiu sua admiração por Antonio de Oliveira Salazar, tanto o intelectual como o estadista. E isso sem prejuízo da alta consideração e identidades com um grande crítico de Salazar, o escritor Antonio Sérgio. O autor da ideia e do convite a Gilberto Freyre foi o então ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, que fora governador da Guiné Bissau e forma entre os grandes portugueses daqueles anos.
A admiração por Salazar, aliás, nada tinha de singular, pois outro brasileiro do mesmo Nordeste, e representativo sob o ponto de vista cultural, Luis da Câmara Cascudo, era outro admirador do estadista português. Na ocasião, esta postura custou-lhe a cobrança dos esquerdistas, alguns indo ao rompimento pessoal, como é normal entre os intolerantes marxistas. Mas o tempo é senhor da razão e, anos depois, foi o próprio Mário Soares, em viagem oficial ao Recife, que fez questão de visitar o sociólogo, que respeitava como um dos grandes das letras nos dois países.
O citado livro de Freyre é o Aventura e Rotina, com uma edição em Portugal e três no Brasil, a mais recente em 2001, na excelente Topbooks, com prefácio do membro da Academia Brasileira e ex-embaixador do Brasil em Lisboa Alberto Costa e Silva. É obra que não perde atualidade pelo que vai descrito, pelo que é previsto e pelo que foi pensado.
Ao descrever a viagem, retrata bem o estilo português de levar uma cultura muito própria a diferentes regiões e povos; diferente das sociedades formadas pelos ingleses, por exemplo, na Nova Zelândia, Austrália e na África continental. A integração racial, a mestiçagem, tudo o que fez o Brasil ser como ele é, Freyre soube definir melhor do que ninguém em suas obras.
No previsto e pensado, já naqueles anos, com a Índia recém-separada da Inglaterra, imaginava que Goa, Damão e Diu deveriam ter um status semelhante ao Canadá, em relação ao Reino Unido, como maneira de preservar a cultura e a presença portuguesa. Eram enclaves pequenos em meio a uma imensa Índia. Também imaginou se não seria melhor, o que veio a desenvolver depois da viagem em crônicas, que Angola e Moçambique tivessem um processo de autonomia sob comando de Portugal, como ocorreu no Brasil, com o príncipe herdeiro, primeiro, no Brasil, e quarto, em Portugal.
Passados os anos, um olhar retrospectivo mostra o bem pensar do autor de Casa Grande e Senzala, que, caso tivesse desenvolvido seu convívio com Portugal – e Recife tão perto –, poderia ter influído numa política de consenso para evitar a guerra e suas consequências, como mutilados, falta de liberdade, corrupção e desunião, antecipando uma comunidade efetivamente unida de países de língua portuguesa. De cultura, formação espiritual e multirracial.
Também hoje, excetuados os referidos marxistas empedernidos, Salazar é reconhecido pelas qualidades de intelectual, estadista de visão, probidade e levado a posições conservadoras e até isolacionistas pela permanente ameaça dos comunistas apoiados por uma potência como a extinta URSS, onde moravam alguns dos líderes comunistas portugueses. Até as restrições à liberdade de imprensa e abertura política são de certa forma entendidas como o mal menor diante da alternativa. O que, aliás, o 25 de abril veio a confirmar, com desapropriações, “saneamentos”, confiscos, queima de preciosas reservas e quase que a perda da liberdade, salva no último minuto.
O ideal que veio a criar a CPLP não deve perecer. Um dia poderá ser uma realidade, com benefícios para todos.