Lisboa não está só no radar dos brasileiros reformados, ou capitalistas assustados com o evoluir da crise política após as imprevisíveis eleições de outubro próximo. Antes, era a leva de trabalhadores, mais de cem mil, a maioria adaptados, formando família. O retorno de portugueses em definitivo também era comum e chegavam chamados de “brasileiros”.. Nos anos 1990, por exemplo, houve a “invasão” dos dentistas (odontologistas), que tanto trabalho deu aos presidentes Mário Soares e Itamar Franco para acertar o conflito, que contou ainda com a habilidade política e sensibilidade do embaixador José Aparecido de Oliveira.
O mundo cultural, artístico, também se interessa em viver a experiência lisboeta, como antes o fizeram o embaixador Dario Castro Alves, os jornalistas Alberto Dines e Sebastião Nery, também ex-deputado, entre outros. Hoje, temos reformados da imprensa que vieram usufruir de Lisboa, como o antigo editor de opinião do Hoje em Dia, de Belo Horizonte, Rui Palis.
O auge, entretanto, foi agora, com a presença da escritora Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras e autora incansável que veio passar um ano em Lisboa.. Aliás, ela já nos deliciou com um livro de pré-memórias (pois ainda tem muito a contar), Coração Andarilho, onde revela toda sua sensibilidade, personalidade rica em afeto e atenta observadora da vida. Sua obra ainda compreende crônicas, contos,reflexões pessoais- Livro das Horas- ensaios e muitos romances.
Essa notável personalidade, de origem na Galícia espanhola, suave e discreta, uma mulher charmosa, como se diz. Nélida conviveu com os grandes de seu tempo, como Mário Vargas Ilosa – que lhe dedicou um livro- Octavio Paz, Gabriel García Márquez, José Saramago, e a sua agente literária espanhola e grande amiga Carmen Balcells, das mais importantes da Europa. Em Portugal, sempre teve amigos, sendo sua amizade diária a atuante Leonor Xavier, a grande companheira de Alberto Xavier e Raul Solnado.
Não se trata apenas de uma grande escritora brasileira, mas também de uma personalidade de relevância na literatura de língua portuguesa. Nélida coleciona prêmios, com a marca da discrição que a caracteriza. E, entre eles, pode-se destacar o importante Príncipe das Astúrias, concedido anualmente pelo próprio Rei de Espanha.
Nélida alugou um apartamento , onde reservou um espaço para escrever, onde vive com a fiel secretaria Carla e seu cão Susy Pinon, que preenche a falta de seu inesquecível Gravetinho, personagem de seus diários.
O que anda produzindo é um segredo a sete chaves, mas é bem provável que o cenário seja a Lisboa de Eça, Ramalho Ortigão, Camilo e Fernando Pessoa. Todos certamente encantados de verem nesta cidade uma escritora como Nélida e lamentando não estarem mais entre nós para usufruírem desta doce e talentosa companhia.
Depois de jantar no Ritz, com ela e Leonor Xavier, o empresário e escritor nas horas vagas André Jordan disse que, diante de conversa tão agradável e inteligente, não se podia nem perceber a qualidade do que se comia pelo encanto da companhia. Com toda razão.
Jornal O Diabo – Portugal/Lisboa 12-06-2018