O antigo gestor e jornalista brasileiro participou em caçadas com os milionários Vinhas, conviveu com políticos como Américo Thomaz e ajudou muitos empresários. Esteve mais de 200 vezes em Portugal.
Quando lançou Profissão Exilado, a dedicatória que Manuel Vinhas lhe fez dizia assim: “Para o Aristóteles Drummond, amigo inestimável e que tão grande colaboração deu a este livro, dedico estas linhas da minha nova Profissão e agradeço como Exilado o quanto tem ajudado a suavizar a condição.” A relação entre os dois era, à época, muito próxima: tinha sido a secretária do gestor e jornalista brasileiro, hoje com 76 anos, a enviar os convites para o lançamento do livro e era no seu apartamento que o empresário Manuel Vinhas ficava sempre que ia ao Rio – foi também da sua casa que saiu em janeiro de 1977, para uma cirurgia da qual nunca recuperou: morreu nesse mês, no Brasil. Depois do 25 de Abril de 1974, Aristóteles Drummond ajudou vários empresários e políticos portugueses. Algumas dessas histórias estão no livro que vai lançar este mês – Memórias… Fatos e Fotos de uma Vida. Outras contou-as agora à SÁBADO. Por exemplo: foi com ele que Marcello Caetano comprou toalhas, panelas e outros utensílios domésticos para a sua casa no bairro do Flamengo, no Rio. A ligação da família a Portugal era antiga: o avô de Aristóteles, Augusto de Lima Júnior, liderou a missão brasileira no duplo centenário da Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940). Foi nessa altura que se tornou próximo de Salazar.
Foi o primeiro brasileiro a receber Marcello Caetano para um almoço no Rio de Janeiro, em 1974. Como surgiu esse encontro?
Fui visitá-lo no Mosteiro de São Bento [onde o sucessor de Salazar foi acolhido quando chegou ao Brasil], expliquei de quem era neto e que queria visitar o Professor. Ele marcou a hora e eu fui lá. Disse-lhe: “Queria fazer um almoço para o senhor, reunir os amigos.” Ele concordou e, no dia, fui buscá-lo, cerimoniosamente, num Dodge grande. Quando estávamos no carro falei quem é que ia estar e terminei dizendo: “é um almoço só de homens, porque o senhor é viúvo.” O Marcello ficou quieto um minuto ou dois e disse: ‘Muito bem que é um almoço só de homens, mas pelo facto de eu ser viúvo podias ter chamado umas senhoras.’ Tinha um ótimo sentido de humor. Só não queria falar no pós-25 de Abril.
E assumia isso?
Sim. Noutro almoço – fiz vários com ele – me disse: “Aristóteles, eu sei que deve haver outros jornalistas na sua casa, diga que podemos conversar sobre tudo até ao dia 24 de abril de 1974.” Ficou muito triste com o que aconteceu. Achava que tinha sido uma grande injustiça com ele. Depois também fiz o almoço de pazes do Marcello com o Américo Thomaz.
Como começou a zanga?
O Marcello publicou um livro aqui, Depoimento, em que explicava que queria ter aberto um pouco mais o regime, mas que o Thomaz resistia, não queria. E aí eles brigaram. Nessa altura, o Presidente Thomaz quis-me conhecer porque sabia que eu era muito amigo dos portugueses. Fui a um hotel vê-lo. Lembro-me que ficava com um rádio de pilhas à janela e botava um esfregão de palha de aço na antena, porque pegava melhor o som. Queria ficar ouvindo as rádios portuguesas. Tinha uma fixação… Tanto que assim que pôde veio para Portugal. Bom, aí conversei com ele, falei da zanga com o Marcello e ele aceitou que eu tomasse a iniciativa de organizar um almoço. Depois fui ter com o Marcello, que disse: “Não tem problema, ele é que brigou comigo.” E aí lá se encontraram e não brigaram.
Quem era a sua ligação mais próxima de Portugal na época?
O meu avô já tinha morrido e a pessoa com quem eu tinha maior ligação era o Negrão de Lima, que foi um grande embaixador do Brasil em Portugal e presidente da câmara do Rio. Foi com ele que, aos 25 anos, eu era presidente da COHAB, a Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara, que tirou 9 mil barracas da Lagoa Rodrigo de Freitas.
É verdade que ajudou Marcello Caetano a comprar utensílios domésticos para a casa do Rio?
O Marcello um dia ganhou um emprego, a faculdade pagou os primeiros alugueres de um apartamento, que estava até mobilado, mas não tinha mais nada. E aí ele me chama e diz: “Eu quero pedir desculpas, mas há uma coisa que só posso pedir a você. O meu filho está-me mandando um dinheiro porque eu preciso comprar coisas aqui para casa e queria a sua ajuda.” Fomos a uma casa de câmbio de portugueses, trocamos um maço de papel pardo com escudos por cruzeiros, e saímos dali e fomos comprar bule de café, guardanapo, toalha de mesa, panela, lençóis e cobertores. Eu e o Marcello. O engraçado é que quem levou o envelope com escudos foi um dos membros de uma comissão oficial para explicar o 25 de Abril aos brasileiros e que era amigo do José Maria [filho de Marcello]. Eram revolucionários.
Ele dava-se com pessoas de todos os quadrantes?
Uns meses depois o José Maria foi ao Brasil, os amigos dele eram a fina flor da esquerda, e fez-se um jantar de comidas baianas, com pequenas coisas. O Marcello ficou com um prato na mão, em pé, olhando para aqueles pratos. Eu estava pensando ajudar quando o jornalista Tarso de Castro, muito à esquerda, diz: “Me dá esse prato que eu vou fazer. E não adianta contar que eu estou fazendo o prato desse fascista aqui que ninguém vai acreditar.” O Marcello riu.
Qual foi a primeira vez que o Aristóteles veio a Portugal?
Foi em 1970. A partir da família de António José d’Orey Mello e Castro, filho do Visconde de Castelo Novo, meu maior amigo desde os 10 anos, conheci muita gente. O Manuel e o Mário Vinhas, que estavam implantando a [cervejeira] Skoll no Brasil, por exemplo. Em 1972, 1973 comecei a ir a Portugal e a frequentar o Zambujal [a herdade onde os Vinhas faziam festas e caçadas]. Em 1973, fui
a uma caçada e fiquei na mesa ao almoço com o Giscard d’Estaing [ex-Presidente francês], o conde de Paris, Henri d’Orléans. Ficava hospedado no Zambujal, porque era o único que não tinha casa ali. Nas caçadas em casa dos condes D’Armand [antigos donos do Palácio da Comenda], os patos caíam na água e os cães iam apanhá-los numa prainha próxima. Só que os cães não iam muito longe
e havia uns pescadores esperando na água para pegar os patos.
É verdade que ajudou Spínola a sair discretamente do Brasil?
O Spínola saiu de Portugal sem passaporte, num helicóptero que foi para Espanha e, na época, o Brasil deu a ele o passaporte que se dá aos refugiados. E com esse ele não podia sair, tinha de ter um visto. Mas surgiu a hipótese de ele se encontrar com o Mário Soares, um encontro secreto. O que conseguimos foi marcar a ida discretamente. Quando pegámos a fotografia dele, eu disse: “Vamos dar um nome”: E ele respondeu: “Outro nome não pode ser.” Mas com o seu nome vai mostrar que é o senhor… “Bom, eu chamo-me António Ribeiro de Spínola, vamos colocar António Ribeiro.” Foi assim.
Onde foi esse encontro?
Em Genebra. Tinha dois amigos filhos de um presidente da Varig e fui pedir a passagem para o general. Sabe qual foi a resposta? “A Varig não pode se meter nisso.” Tivemos que fazer uma vaquinha à noite, na minha casa, para comprar o bilhete. E aí eu disse: “Não vamos comprar na Varig, vamos comprar na Suisse Air.”
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Também acabou envolvido na venda de uma das melhores casas de Lisboa, a moradia dos Queiroz Pereira no Restelo, onde é hoje a Embaixada do Brasil.
Não tive nada a ver com a venda da casa, só com o dinheiro. Um dia o professor Marcello Caetano me telefona e pede que eu receba o primo dele, o Manuel Queiroz Pereira, dono do Ritz. Liguei e marquei um almoço. Lembro-me que o Manuel Vinhas estava lá – tinha alugado uma casa na Baía, desocupada pelo Vinicius de Morais, mas no Rio ficava na minha – e adorou encontrar o Manuel. Chamei também o meu padrinho de crisma, o senador Gilberto Marinho, que adorava Portugal. A questão é que os esquerdinhas não queriam pagar ao Queiroz Pereira fora de Portugal e ele não concordava, ainda para mais, como dizia, estava vendendo a casa “baratíssimo”. Custou ao Brasil 3 milhões de dólares [hoje 2,42 milhões de euros], com tudo dentro.
Como conseguiram resolver?
O meu padrinho telefonou na hora ao ministro da Justiça e explicou a situação. No dia seguinte o ministro me ligou e me deu o nome do embaixador Guilherme Leite Ribeiro. O Brasil tinha um escritório financeiro em Nova Iorque, para pagar o aluguer de embaixadas e o salário de diplomatas. O Manuel Queiroz Pereira tinha de mandar alguém, ou ir lá ele, para receber o dinheiro. A venda foi feita através desse escritório.
No seu livro conta que chegou a ter uma aventura com um carro que os Vinhas conseguiram fazer sair de Portugal nessa época.
No 25 de Abril os Vinhas conseguiram tirar alguns carros para Espanha, e dali para Paris. Vi três, um Mercedes 51, que parecia um Rolls-Royce, um carro italiano descapotável, dos anos 30 ou 40, desconfortável para andar, e um Volkswagen SP2. Estava em Paris com uns amigos e resolvemos pegar no Mercedes, que era um show. Um dia chegamos de manhã e tinha um envelope branco no carro. Abro e um cartão de visita meio grande, quase um cartão postal, da melhor casa de cartões do mundo, marcadinho no canto, em alto relevo, dizia: “Monsieur, madame, o seu preço será o meu.” Peguei um susto: se a gente bate com esse carro aqui, isso deve valer uma fortuna. Fomos deixar o Mercedes lá e pegamos o SP2. Era um carro de fibra de vidro, simples, mas muito bonito, que um porteiro de discoteca chamou La Petite Ferrari.
O seu avô, Augusto de Lima Júnior, esteve em Lisboa nos anos 40. É a sua mais antiga ligação a Portugal?
O pai do meu avô foi governador de Minas Gerais, foi ele que mudou a capital do estado de Minas para Belo Horizonte [em 1893], foi deputado, presidente da Academia de Letras e académico. O meu avô nasceu e viveu no mundo da política. Era procurador do tribunal marítimo, mas era também um escritor e historiador de relevo. Só sobre Minas Gerais publicou quase 30 livros. Por tudo isto, Getúlio Vargas [então Presidente do Brasil], propôs que ele fosse nomeado delegado extraordinário e plenipotenciário, representando o Brasil no duplo centenário da Exposição do Mundo Português. Acabou por ficar dois anos e meio em Portugal e, como era muito católico, fez uma amizade grande com Salazar e com o cardeal Cerejeira. Um dia, um empresário brasileiro, o António Carlos do Amaral Osório, foi visitar Salazar e levou uma carta do meu avô. E o Salazar respondeu com uma letra pequenininha. O meu avô me
deu essa carta quando eu tinha 20 e poucos anos. Na época não dei a importância histórica que devia e não sei onde a pus.
Foi o seu avô que lhe deu a cópia oficial da Cruz da Primeira Missa no Brasil, que recebeu de Salazar.
Naquela ocasião foram feitas duas cópias da Cruz que está em Braga. Uma foi dada ao meu avô oficialmente, e ele entregou ao Getúlio ou a alguém, porque era para o Brasil. A outra a título pessoal. Foi o meu avô que inventou fazer de Ouro Preto cidade monumento nacional. E foi ele que teve a ideia de fazer o Museu da Inconfidência, que é o segundo museu mais visitado do Brasil.
A Inconfidência foi uma conspiração política contra o Governador de Minas, que nessa época [1780] era escolhido por Portugal, porque o Brasil era uma colónia. Porquê a criação desse museu?
O Museu foi a consequência de uma grande ideia que ele teve. Os inconfidentes foram morrer no degredo, uns para Moçambique, outros para Angola ou Portugal, foram desterrados. A ideia do meu avô foi que Portugal reunisse esse restos mortais e os entregasse ao Brasil. Em 1937, 1938 foi a Portugal buscá-los com o barco da Marinha. Os restos mortais do inconfidente mais famoso, o poeta Tomás António Gonzaga, andaram perdidos e a lápide foi posta primeiro. Só nos anos 70 ou 80 foi encontrado o envelope com os restos mortais. Estava perdido no Ministério das Relações Exteriores, no Rio.
Além de jornalista, foi gestor. Um dos últimos cargos foi na administração não executiva da Pharol, até janeiro de 2020. Porquê?
As empresas eram para poder ganhar a vida e ter uma boa reforma, mas sempre gostei foi de escrever.
Como manteve a sua ligação a Portugal durante a pandemia?
Vim para o Brasil no início da pandemia, mas em meados de agosto não aguentei de saudades e viajei para Portugal. Na minha vida já fui mais de 200 vezes a Portugal. Em janeiro estava sempre aí porque era o aniversário do Mário Vinhas [que morreu em 2018] – em 32 aniversários dele, estive em 26. Em janeiro, lanço o livro aí. Estou duplamente vacinado, no Brasil com a Coronavac, e em Portugal com a Pfizer. Não sou negacionista, sou conservador, anticomunista e anti-Bolsonaro. E sou um velhinho muito animado [risos]
Link da Entrevista:
https://www.sabado.pt/entrevistas/detalhe/aristoteles-drummond-o-marcello-caetano-falava-de-tudo-ate-ao-24-de-abril-de-1974