Aos 92 anos, o ex-presidente José Sarney é uma espécie de consultor da República, ouvido e respeitado por quase todas as forças políticas do país. Inclusive da esquerda mais esclarecida e menos radical.
Depois de uma rica carreira, em que foi deputado, senador, governador de seu estado, o Maranhão, foi vice de Tancredo Neves e exerceu o mandato daquele que, eleito, adoeceu no dia da posse e morreu dois meses depois. Coube a ele o primeiro governo pós-regime militar, ao qual serviu com dedicação como dirigente do partido governista, PDS, sempre na ala liberal da Arena e de seu sucessor, o PDS. Assim é que foi recebido no partido da oposição de então, o PMDB, e indicado para vice de Tancredo Neves, o articulador da redemocratização sem traumas. Saiu-se muito bem, governou com habilidade, paciência e tolerância e convocou a Constituinte que formalizou a abertura política. A Carta sofreu uma primeira revisão prevista em 1993 e tem sido alvo de reparos, pois foi feita antes da queda do Muro de Berlim, tendo muitas aberrações considerando o mundo de hoje.
Embora esteja colhendo os frutos de uma carreira marcada pela cordialidade e inquestionável sabedoria política, Sarney foi por muito tempo alvo da ironia dos denominados “politicamente corretos”, que procuravam desmerecer seu lado de escritor, o que é desde a mocidade. Boa leitura, bom texto, convívio fraterno com grandes intelectuais e a justa chegada à Academia Brasileira Letras, antes de ser presidente da República. Getulio Vargas foi acadêmico, mas em pleno exercício do mandato, e Fernando Henrique logo depois.
Começou a vida como jornalista, tendo ligação fraterna com gênios maranhenses de seu tempo, como Ferreira Gullar, poeta, Josué Montelo, escritor consagrado e também acadêmico, e seu quase irmão Odylo Costa Filho. Afonso Arinos Sobrinho, seu contemporâneo na política, mais velho, entretanto, o definiu como o maranhense que uniu São Luiz, chamada de Atenas pelos intelectuais, a Roma, pela presença política.
Sempre que pode vai ao Rio para rever acadêmicos. Teve na casa amigos inesquecíveis como o mineiro Oscar Dias Corrêa e o piauiense e seu amigo de toda vida Carlos Castello Branco. Afastado de mandatos, tem dedicado muito tempo aos livros que tanto ama, seja em Brasília ou em sua casa no Maranhão. E tem por Portugal grande estima, tendo feito questão de o visitar quando na Presidência. Entre seus amigos queridos, Mario Soares, português, e José Aparecido de Oliveira, que foi seu ministro da Cultura. A atual Embaixada do Brasil, chancelaria, foi inaugurada por ele numa viagem não oficial a Lisboa. Na ocasião, Mario Soares declarou que era o mais brasileiro dos presidentes de Portugal e Sarney, o mais português dos presidentes do Brasil. Aliás, a embaixada foi adquirida sendo embaixador em Lisboa o seu colega de Academia Brasileira e amigo fraterno Alberto Costa e Silva, grande africanista e identificado com a cultura portuguesa.
Uma vida pública como a dele é raridade. Nunca esteve envolvido em falcatruas, nunca perseguiu ninguém, nunca foi grosseiro; o poder não o deslumbrou. Abrigou em seu ministério até adversários na política maranhense como o ex-deputado Renato Archer, cuja amizade com Tancredo respeitou. Infelizmente ainda não colheu o reconhecimento que fez por merecer.
Publicado em: Jornal O Diabo.pt 13/01/23