O grande escritor brasileiro Erico Verissimo, cujos livros foram editados e bem vendidos em Portugal, inclusive com edições recentes, escreveu suas memórias, em 1971, pela Editora Globo, de Porto Alegre, em dois belos volumes sob o título de Solo de Clarineta. A edição de luxo foi presenteada pela então maior agência de propaganda do Brasil, a MPM, no Natal de 1971. Erico era homem de personalidade e temperamento difícil – apesar do sucesso literário, nunca aceitou disputar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, por exemplo.
Acompanhava e opinava sobre política, não era um alienado, mas chegava aos limites da ingenuidade quando, como democrata, colocava as ditaduras de sua época no mesmo balaio. Não sabia distinguir regimes autoritários de ditaduras cruéis, implacáveis, inclusive com o mundo intelectual, impondo censura severa ou prendendo os que ousavam discordar, mesmo que de forma suave. Vide o caso de Alexander Soljenítsin, autor do histórico Arquipélago Gulag. Não condiz com um homem inteligente, culto e sem as marcas da ideologia comparar, nos anos 1950, o regime soviético com os governos autoritários de Portugal e Espanha, por exemplo.
Erico era mesmo um escritor, tradutor, editor, que acompanhava a política sem ser partidário. Não gostava do estilo do Partido Comunista de “obediência cega”, como se referia, lamentando colegas que abriam mão do pensar pelo obedecer. Há quem diga que era uma indireta para seu amigo Jorge Amado, nos seus anos de entrega total ao comunismo russo. Mesmo tendo morado nos EUA por mais de dois anos, não tinha uma posição clara de condenação ao comunismo como ameaça ao mundo livre.
Em 1959, fez uma longa e prazerosa viagem a Portugal, a convite de seu editor, em que narra suas palestras, com a cobertura da imprensa portuguesa. Reclamava que estaria sendo vigiado pela PIDE, que o acompanhada a distância em todo o percurso, de Lisboa a Coimbra, ao Porto e a Guimarães. Destacou na narrativa, que está em livro, que defendia ideais democráticos sob aplausos da plateia e o incômodo dos agentes policiais.
Ora, a narrativa parece sincera e real. O estranho é se referir ao regime português de então como uma ditadura férrea, quando a Polícia se limitava a acompanhar suas palestras e os jornais anunciavam sua presença no país. Afinal, ele era um autor de língua portuguesa bem lido em Portugal; o seu Olhai os Lírios do Campo mereceu mais de uma edição. Nesta viagem, que é uma deliciosa passagem do livro, o escritor estava acompanhado da mulher, Mafalda (nome tão português!), e do filho Luís Fernando, um adolescente.
O filho acabou superando o pai em volume de livros vendidos (cerca de cinco milhões), por se dedicar ao humorismo, à ironia, a crônicas, a livros de viagens e, recentemente, até ao romance, em que o pai foi dos maiores entre os brasileiros. Seu sucesso em Portugal, mais de meio século depois da viagem do pai e com um mercado muito maior, é enorme e ele ainda colabora no mais importante semanário, EXPRESSO. Neste, volta e meia, rumina sua má vontade com o país dos anos 1950, que era o Portugal possível. Parece que, embora tendo herdado o talento do pai, é menos independente e gosta de cortejar as esquerdas mais próximas do comunismo. Chega ao ponto de justificar os malfeitos do ex-presidente Lula da Silva. No entanto, ao que tudo indica, Luis Fernando nunca imaginou, como seu pai, se poderia fazer uma viagem de palestras em defesa da democracia na Cuba de Fidel (e de hoje) ou na Venezuela de Maduro. Cortina de ferro nem pensar.
Essa é a mancha da maioria intelectual do Ocidente de nossos dias. Foi-se o tempo em que intelectuais de coragem, como Mário Vargas lIosa, Yves Montand, Jorge Semprun, Costa Gravas e Fernando Arrabal, romperam e denunciaram o terror vermelho.